sexta-feira, 20 de agosto de 2010

BICOS E FUTUROS EMOCIONAIS

Como diria a Adriana Calcanhoto, “eu ando pelo mundo, prestando atenção em cores...”.

As cores, nesse caso, são as mais determinantes, pois minha atenção um dia desses recaiu sobre o tamanho do bico que fiz ao ser preterido por minha pequena filhota, que preferiu a mãe para um determinado assunto-momento do dia a dia.

O momento não importa, o que é relevante mesmo é a questão do ranking de bicos. Como diz o colono, explico: o bico, formação súbita e ás vezes duradoura, provocada por uma contrariedade, uma frustração, uma decepção, seja ela justa ou não, tem graus, tamanhos e permanências diferentes.

Presume-se que, quanto mais idade você ganhe (não dá pra usar “quanto mais adulto você fique”, pois idade e “adultez” não tem vínculo obrigatório entre si), menos frequente e de menor tamanho será o seu bico.

Pode-se dizer que entre a infância e a pré-adolescência os bicos costumam ser como de vultuosos tucanos, e que na meia idade eles já se tornam ás vezem saliências quase imperceptíveis, como de pequenas maritacas.

De qualquer modo, fazer bico e lhe manter feito é uma característica péssima, via de regra, pois quase todo bico é injustificado instrumento de resistência chantagista.

Voltemos então ao meu bico no dia em que minha filha, uma criatura de dois anos de idade, resolveu que não queria que eu pusesse ela pra dormir, e sim a mãe.

Culpas e convívios á parte, méritos e construções de elegibilidade excluídos, o bico, nesse caso, só pode ser exorcizado, defenestrado, pulverizado com uma arma porreta de raios laser, pois a deseducação e a desestabilização da criança, ao enfrentar o bico do adulto, é inevitável e perniciosa.

Não estou aqui me martirizando, porque fui motivo de compaixão e carinho de minha esposa, e consegui, com algumas manobras peripatéticas e desafinadas, ganhar o direito de colocar minha filha na cama.

Mas nos dias seguintes, algo aconteceu na minha vida profissional que me desolou, me desacorçoou, como se fala lá na roça.

Um cliente, pai separado de um filho de oito anos de idade, havia acolhido, por causa da mãe absolutamente relapsa e desinteressada pela criança, o garoto para viver com ele. Os enfrentamentos e desafios de mudar seu cotidiano e acolher mais uma pessoa, por mais que seja seu filho, são óbvios.

Contudo, são tão óbvios como são obrigatórios, pois há uma lei quase de superioridade divina que deve nos compelir a arcar com as responsabilidades da paternidade.

Filhos são o mote do amaciamento da alma e da maturidade, em alguns casos, forçada.

São inicialmente, escolha, e depois, dever.

Não consigo defender, por mais que se tente uma justificativa naturalista beatnik, desvincular a paternidade de seu papel de lançamento das fundações da personalidade do filho, que se formará.

Não estou falando de suporte financeiro, meramente, ainda que este deva ser proporcional à índole e oportunidades, ou até mesmo causa de esforço do amor aterrador que ás vezes é ser pai.

Mas estou falando de nutrição emocional, de devoção controlada e consciente aos filhos.

Voltando ao caso que me indignou, o pai, enfrentando a nova realidade de ter o filho com sua nova mulher e seu outro filho do novo casamento, ouviu do menino, num dia qualquer, que este queria voltar a morar com a mãe.

De repente, nuvens muito cinzentas se ergueram sobre a cabeça desse homem, um profissional liberal informado, culto e de sucesso, e este, enfrentando a suposta ingratidão, esbravejou com o menino, lhe dizendo que podia ir morar com a mãe, que fosse, mas que esquecesse que ele era seu pai.

O desafio emocional, de proporções titânicas para o menino de oito anos de idade, estava lançado.

Tome aqui, moleque, pegue essas três bolas de boliche e faça malabarismo com elas.

Força, vamos lá, você é feito de que, de maria mole?

Se não guenta porque veio?

Ouvindo a narrativa da madrasta do menino, que nos procurou em certo desespero por reconhecer a opressão, me espelhei naquele homem pra lembrar do meu bico.

Pobre de mim, um bico ínfimo, ainda que existente, não podia competir com aquele bico de pterodáctilo que o pai havia feito ao desafiar o menino a não ter mais pai.

Não era realmente uma luta justa: como o menino, com seu bico de pardal, enfrentaria o gigantesco bico do pai, um bico que vociferava, do alto de sua condição de provedor, tanto emocional como material, para que o menino esquecesse que tinha pai?

Me revoltei ao figurar em minha mente a imensa dose de infantilidade do pai, era realmente uma disputa desequilibrada, massacrante, o bico, uma tempestade de imaturidade e de insurreição emocional por parte daquele pai, esmagava a infantilidade natural do filho, inerente, esperada, que lhe é característica, afinal, ele só teve oito anos para desenvolver a envergadura de seu bico, para juntar queratina e conseguir formar seu pequeno biquinho, sua birra, materialização do descontrole e da falta de autonomia.

A confusão emocional, a falta de certezas e exatamente o que clama por um guia emocional que lhe conduza, vagarosamente, ao descarte do bico.

Afinal, nosso tutores, aqueles pra quem olhamos com admiração, naqueles que nos sustentamos, são nossos ídolos exatamente porque em algum momento descartaram seus bicos.

Olhando pra eles, podemos então acreditar que um dia conseguiremos jogar nossas birras e descontroles na lata no lixo.

Aquele menino, contudo, talvez nunca poderá fazer isso, pois seu pai lhe mostrou que o bico estava guardado para uma emergência, e era de um tamanho descomunal.

Uma luta tão injusta como poderia ser.

Inevitavelmente, vendo os monstrengos que podemos deixar se formar, senti vergonha da minha contrariedade e infantilidade, mesmo tão bobinhas, por entender que esses cantos mal lixados que carregamos podem se tornar enormes e incuráveis.

Pior: ao ver aquele pai, quando desafiado pelo filho, optar por bombardear de volta em vez de vencer usando uma bela carga de inteligência emocional, constatei que esse menino vai ter que se virar, pois no momento de fraqueza e dúvida, total direito dele por simplesmente ser criança, ele recebeu como contraponto uma fraqueza agressiva e uma dúvida infantil.

Golpe baixo, mesmo.

Vale internalizar a reflexão cotidiana, professar a auto-reflexão.

Numa hora, somos suportados, e em outra sustentáculos. Isso é a sequência natural da vida.

Por isso mesmo, abraço aberto e desejo de uma boa e feliz vida, temos que entender, pois a regra é escandalosamente clara: não temos o direito de ser mais crianças do que as nossas crianças.